segunda-feira, 2 de novembro de 2009

a dança da música



Nunca se irritara tanto com o som de seu despertador. Seja porque fazia muito frio e sua cama mostrava-se irresistivelmente atrativa, seja porque era terça-feira, dia das odiadas aulas de literatura. Não que não gostasse de literatura, a questão era a maneira lambrequenta e simplista que aquela professora preguiçosa a “ensinava”. O barulho continuava. Tinha de se levantar. A claridade já invadia a janela e o abrir de olhos foi doloroso. O estado de sonolência, no entanto, durou muito pouco: serpentinas coloridas, dessas que se usa em dias de carnaval, dançavam de forma esquizofrênica por todos os cantos do quarto. Como cobras nadando no mar, entrecruzavam-se sem se tocar, cada uma a seu ritmo. Um espetáculo digno de registro, não fosse o fato de ser também um bocado assustador. Desliga o despertador no intuito de concentrar sua atenção nas serpentinas voadoras e o silêncio trás consigo o sumiço delas. (Um sonho. Foi tudo um sonho. Um sonho muito real. Mas não passou de um sonho, um sonho muito real). Devidamente justificada a visão estranha (Impressionante como os sonhos de hoje se camuflam na realidade), agora era preciso se vestir, pois o tempo corre quanto mais nos atrasamos. Chega milagrosamente poucos minutos antes de tocar o sino. Senta-se em seu lugar tacitamente decidido e antes que pudesse emitir qualquer cumprimento a seus colegas, o sino toca e (Não era um sonho!) as serpentinas tomam conta da sala de aula. (Caraca! Olha isso! Como assim o que?! Você não vê nada?! Impossivel! Estão em toda a sala!). Não era um sonho: podia ver a música. (Estou vendo a música!!). A característica, no entanto, parecia ser só sua (Não, estou bem. Depois conversamos). Loucura? Não. Preferia pensar em dom, ou poderes especiais. Um super-herói. (Um super-herói!!). Fez o teste com músicas de seu celular e para cada uma havia serpentinas dos mais variados tipos: trançadas, em caracol, paralelas, amassadas... Encantou-se. (As músicas são ainda mais belas assim!). No intervalo, porém, disfarçou. Receio de parecer louco. Foi pra casa com objetivos científicos e passou a tarde traduzindo em rabiscos coloridos aquilo que era exclusividade sua. Adormeceu enquanto pensava no porquê de tal capacidade especial. Será que teria de salvar o mundo? De que? Quando? ... O barulho do despertador não o irritou dessa vez. Os olhos, que se abriram afoitos à procura do som dançarino, logo se semicerraram em decepção. (Um sonho. Foi tudo um sonho. Um sonho muito real. Mas não passou de um sonho, um sonho muito real). Era uma pessoa como todas as outras, num dia como todos os outros. Com a particularidade aterrorizante de se tratar de uma terça-feira, e ter aula de literatura. Chega após o sinal e não gasta atenção com a bronca da professora preguiçosa. Abre o caderno a contragosto e lá estão seus rabiscos da tarde anterior.

C.S.S.

a cutucadela final


A vida do poeta era por todos invejada.
Mulheres não lhe faltavam e o reconhecimento futuro pelos versos bem estruturados era certo.

(E o ogro dormia em sono profundo)

O poeta gostava de sair no frio dolorido da cidade nórdica e sentir as bochechas queimarem. Tinha amigos para todos os dias do ano e a cada um já havia dedicado preciosos arranjos de palavras.

(E o ogro em sono profundo)

Versos simples bastavam para o pão de cada dia e a vida do nosso poeta parecia estar completa.
Mas havia o ogro, (e o sono profundo).

Não satisfeito em ler seus sonhos e pesadelos, o poeta decide acordá-lo com seu arsenal [infalível] de boas poesias.

Suas cutucadelas rapidamente surtem efeito e já não há mais, (o sono profundo).

O ogro, desperto e furioso, inicia sem dificuldade a destruição dos aparentemente ousados versos do poeta para que, por um momento, pensemos em suicídio de palavras.

(Mas a vida não vence aquele que vive, vence?)

uma última cutucada no coração e ele cai
[vencido]
no chão.
C.S.S.