quarta-feira, 26 de novembro de 2014

a espinha


Há uma espinha no noroeste de minha bochecha esquerda. Ela não é a única, nem será a última. Maldita acne hereditária que bombardeia – em toda a sua perversidade – o pouco de autoestima que ainda me resta. Sinto seu estado febril caminhar para o amadurecimento e nasce em mim a tentação incontrolável de espremê-la.

Não sou mais tão jovem – mostram os números impressos em minha certidão de nascimento. Como se eu não existisse antes deles, e como se eu morresse no exato momento em que dizem que fechei os olhos pela última vez. Nem tudo na vida cabe em combinações de 0 a 9. Os números mentem.

Talvez eu precise mais de corretivo do que meu rosto.
Talvez a juventude transborde os limites de minha pele.
Ou talvez eu viva uma puberdade tardia, dessas que afloram invisíveis nos corações daqueles que, por desatenção ou descaso de si mesmo, esqueceram-se de sonhar.

C.S.S.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

new born


Tentou esticar as pernas, sem sucesso. Concentrando os esforços nos braços, não conseguiu ir além de pequenos movimentos – que logo incomodaram-lhe a cabeça, inevitavelmente próxima do tórax flexionado. Onde quer que estivesse, aquele espaço era visivelmente insuficiente para seu corpo.

Imobilizada, voltou sua atenção para o líquido quente e viscoso que a cercava. Ato reflexo, abriu os olhos. A escuridão permaneceu.

- “Esse filho não é meu! Vagabunda!”, ouviu – e, sem a consciência de que ouvia pela primeira vez, sentiu um tremor tomar conta de seu pequeno espaço. O tremor veio acompanhado de mais sons desconhecidos, que dessa vez vinham de dentro, reverberando pelo líquido viscoso.   

Enquanto seu corpo chacoalhava no ritmo dos soluços, sentiu algo esticar em sua barriga. Através de um negócio comprido que saía de seu umbigo, conheceu a tristeza. Não sabia, mas também queria chorar.

Não demorou para que a tranquilidade voltasse ao seu pequeno espaço. Estava prestes a pegar no sono quando percebeu a aproximação de uma das paredes. – “Mamãe te ama”, ouviu pela segunda vez, enquanto um calor diferente chegava pela parede fina. Aproximou-se para sentir melhor o afago e – “Ela está chutando!” – ouviu pela terceira vez.

Com o passar das semanas – que nem sabia eram semanas e muito menos que passavam – compreendeu algumas coisas: “dinheiro”, “pai da criança”, “aluguel” e “desemprego” eram sons que geralmente vinham com o tremor que lhe entristecia; “mamãe”, “ama” e “bebê” – seus preferidos – eram acompanhados pelo sempre bem-vindo afago acolhedor; “estou feia e gorda”, “gases” e “tem um tamanho maior”, embora corriqueiros, considerava irrelevantes.

Estava já acostumada com aquele pequeno espaço – mesmo o sentindo menor a cada dia – e não entendeu quando as paredes começaram a se movimentar de uma forma desconhecida. No espaço que antes era completamente escuro, viu surgir uma fresta de luz.

A curiosidade venceu o medo e, no instante em que tentou tocar aquele feixe diferente que se destacava na escuridão, puxaram-na para dentro (da luz) e fora (do espaço).

Sem a menor ideia do que estava acontecendo, sentiu algo entrar pelas suas narinas e estufar seu tórax, não mais flexionado. Não tardou para que emitisse os já conhecidos sons e tremores.

Suas pernas esticaram-se e seus braços movimentavam-se, aflitos, sem saber muito o que fazer com tanta liberdade. – “É menina!”, ouviu – enquanto uma parede ainda mais fina, e sem qualquer líquido, envolvia seu corpo. O pânico foi geral. Tudo o que ouvia era seu próprio som de tremor, cada vez mais alto.

– “Ela é linda!”, disse a voz que lhe afagava, que agora saía de um buraco em movimento. Calou-se para não perder nenhum detalhe da voz familiar, que logo começou a emitir o som de tremor. Não entendeu – mas aquilo não importava, pois estava novamente perto da voz e do calor que lhe acalmavam. Novamente sem saber, conheceu o amor.

C.S.S.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

era pra ser


Luciana e Ricardo tinham gostos parecidos no essencial da vida. Moradores do Setor dos Funcionários, não nutriam grandes ambições, trabalhando dia e noite para pequenas conquistas. Até mesmo nas brigas – se um dia existentes – eles certamente saberiam fazer as pazes e se amar ainda mais. Teriam filhos lindos e inspirariam tantos outros casais.

Ainda sem se conhecer, Luciana e Ricardo eram almas gêmeas. Bastava uma apresentação, um olhar trocado, um esbarrão no metrô.

Não fosse a preguiça de Ricardo para acordar cedo aos domingos, não fosse a não ida de Luciana ao baile da associação de moradores, não fosse a troca de emprego e de linha de metrô de Ricardo, não fosse a jornada extra no trabalho de Luciana aos sábados para quitar o financiamento do apartamento, não fosse – talvez – o rancor do destino.

Morreram sem dar o primeiro beijo desajeitado em frente ao cinema mais antigo da cidade, não ficaram bobos com os primeiros passos de Ricardinho Júnior, não se encheram de orgulho na formatura em Medicina de Nandinha, não realizaram o sonho de conhecer Paris juntos. Morreram sem sentir a maravilha de dar as mãos e entrelaçar as almas.

Foram apenas dois corações repletos de amor a menos no mundo.

(fazer o quê, é a vida)

C.S.S.