quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Recordar é viver?

Era 2013 e eu estava no supermercado com minha avó. Ela pegou um pacote de linguiça, disse "vou levar para o seu avô" e o colocou no carrinho que eu empurrava. Meu avô falecera em 2010, ela não se lembrava e eu não consegui contar a "novidade". Chegando em casa ela já teria se esquecido até mesmo do pacote de linguiça.

O Alzheimer é cruel. Eu acompanhei o progresso assustador da falência da memória de minha avó e, após sua morte, afirmei que preferia morrer a ter a mesma doença. Partia do pressuposto de que não vale à pena viver sem lembrar do que se viveu. Um museu necessário, uma vida baseada em passado acumulado.

Já me falaram que o coração é apenas uma bomba de sangue e que todos os sentimentos que lhe imputamos são, na verdade, frutos da nossa mente. Não acredito nisso. Infinitos sentimentos me tomam todos os dias sem que eu possa explicá-los racionalmente. Eles vêm do coração. Vêm agora e sempre virão. São presente e futuro, mente é passado.

Hoje, repassando os últimos dias com a minha avó, percebo que, sim, ela não se lembrava do que tinha almoçado no dia anterior, e nem qual filme assistira depois do jantar, mas ela ainda se divertia com as gracinhas dos bisnetos, ainda gostava de passear, ainda tinha seus filmes e comidas preferidos. Seu coração nunca deixou de bater enquanto a doença afetava sua mente. Ela tinha presente e futuro, havia vida para ser vivida.

Olhando um dos álbuns de fotos da família, vi que meu avô escrevera atrás da capa "recordar é viver?". Hoje, com saudade dos dois, respondo: "nem sempre, vô, nem sempre".

C.S.S.

Duas notícias

Duas notícias. Na primeira: uma médica deu um tapa em um menino de 6 anos com Síndrome de Down, chamando-o de "débil mental" na frente dos pais. Na segunda: um menino, também com 6 anos, escreveu uma carta para o presidente Barack Obama oferecendo sua casa e sua família para receber um menino sírio que aparece machucado, sujo e assustado em uma foto que ficou famosa na internet.

Agora uma experiência própria: quando trabalhei como voluntária com crianças com deficiência intelectual, me disseram para tomar cuidado porque eram "agressivas". Disseram também que não valia muito à pena dar aula de teatro pra elas, que elas pouco aprenderiam. Com esses "pré-conceitos", que me foram passados por pessoas que jamais haviam dado aula de teatro para crianças com deficiência intelectual, eu fui. E fiquei por 1 ano e meio. Agressividade? Não vi. Pelo contrário, eu fui muito bem recebida. Mas eu vi uma coisa. Vi essas crianças aprendendo, desenvolvendo habilidades dentro de suas limitações (e quem, com ou sem deficiência, não tem limitações?). Hoje eu tenho um "conceito formado" sobre pessoas com deficiência, e ele em tudo difere dos "pré-conceitos" que me foram transmitidos.

Voltando às notícias. Na primeira, uma médica vai muito além da reprodução de um "pré-conceito", agredindo uma criança de 6 anos. Na segunda, uma criança de também 6 anos demonstra amor incondicional por outra criança. Observe que na segunda notícia não há religião, raça ou qualquer outra forma de discriminação. É um menino querendo ajudar outro. Simples assim.

Ninguém nasce odiando ninguém. O ódio é ensinado a partir de uma série de "pré-conceitos" transmitidos entre gerações. Que tal inverter por um momento a relação entre quem ensina e quem aprende? Amar a gente já nasce sabendo, mas às vezes precisamos das crianças para refrescar nossa memória.

C.S.S.

2017

É muito fácil amar o espelho. Cercar-se de pessoas com ideologia e comportamento semelhantes ao seu, afastar-se do diferente. E se isso não implicar em restrições ao direito do diferente, tudo bem. Exemplifico: uma diretora de escola pode proibir a entrada de pessoas com deficiência, de esquerda ou homossexuais na sua casa (ambiente privado), mas não pode negar matrícula à essas pessoas (que possuem igualmente direito à educação). Em resumo: "você pode ter todos os preconceitos do mundo, desde que não atrapalhe a vida do outro, que tem exatamente os mesmos direitos que você".

Entretanto, quando o diferente é seu filho, afastar-se fica ligeiramente mais difícil. Isso porque, presume-se, o amor que une mãe e pai aos filhos é forte.

Eu não sei o que é gerar uma pessoa dentro de si, vê-la nascer, crescer, ensinar-lhe coisas, cuidar dela, dar-lhe conselhos... Contudo, embora sem nunca ter tido essa experiência, eu tenho exemplos fantásticos em casa. Minha mãe e meu pai, cada um à sua maneira, me mostram diariamente o que é o amor incondicional. Há 28 anos conto com o cuidado e apoio deles em tudo que faço: mesmo não concordando sempre, a regra aqui é "você está feliz assim? Então está tudo bem, também estamos".

Em novembro do ano passado, um pai matou o próprio filho por diferenças ideológicas. Em dezembro, uma mãe matou o próprio filho porque ele era gay. No mesmo mês, um vendedor do metrô morre espancado ao defender uma travesti. Na virada de ano, um pai mata o próprio filho, a ex mulher e mais 10 pessoas. Isso porque cito apenas casos mais recentes e amplamente divulgados pela mídia. Muitos outros existem.

Três exemplos de pais tirando a vida dos próprios filhos e, no único exemplo de amor ao diferente, nenhuma relação de parentesco.

Não sei o que pensar ou dizer sobre isso. Sinto uma profunda tristeza. Mas não é só. Sinto também uma intensa vontade de transmitir tanto amor que me foi e é dado.

Que haja um escudo de amor para cada punho que se fechar em ódio.

C.S.S.