sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

15 quereres para 2015


1) Que eu tenha mais paciência com as pessoas, principalmente comigo.
2) Que eu possa entender melhor meus pais e minha irmã.
3) Que eu pense antes de falar, mas não omita palavras por receios tolos.
4) Que eu não esteja sempre tão ocupada para encontrar meus amigos.
5) Que eu faça novos amigos.  
6) Que eu me mostre por inteiro.
7) Que eu tenha mais disciplina, mas não me leve tão a sério.
8) Que eu me permita errar e (me) perdoar.
9) Que eu aprenda a dizer “não”.
10) Que eu coma doces com moderação e me exercite mais.
11) Que eu consiga acordar cedo sem sofrer.
12) Que eu não me preocupe com bobagem.
13) Que eu saiba escolher, mas não exclua possibilidades.
14) Que eu mantenha os pés no chão, mas sem perder a esperança.
15) Que eu aceite não ser tudo o que pensava, mas que consiga não ser pouco.

E, sobretudo, que eu não seja só “eu”, mas “nós”.


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

a espinha


Há uma espinha no noroeste de minha bochecha esquerda. Ela não é a única, nem será a última. Maldita acne hereditária que bombardeia – em toda a sua perversidade – o pouco de autoestima que ainda me resta. Sinto seu estado febril caminhar para o amadurecimento e nasce em mim a tentação incontrolável de espremê-la.

Não sou mais tão jovem – mostram os números impressos em minha certidão de nascimento. Como se eu não existisse antes deles, e como se eu morresse no exato momento em que dizem que fechei os olhos pela última vez. Nem tudo na vida cabe em combinações de 0 a 9. Os números mentem.

Talvez eu precise mais de corretivo do que meu rosto.
Talvez a juventude transborde os limites de minha pele.
Ou talvez eu viva uma puberdade tardia, dessas que afloram invisíveis nos corações daqueles que, por desatenção ou descaso de si mesmo, esqueceram-se de sonhar.

C.S.S.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

new born


Tentou esticar as pernas, sem sucesso. Concentrando os esforços nos braços, não conseguiu ir além de pequenos movimentos – que logo incomodaram-lhe a cabeça, inevitavelmente próxima do tórax flexionado. Onde quer que estivesse, aquele espaço era visivelmente insuficiente para seu corpo.

Imobilizada, voltou sua atenção para o líquido quente e viscoso que a cercava. Ato reflexo, abriu os olhos. A escuridão permaneceu.

- “Esse filho não é meu! Vagabunda!”, ouviu – e, sem a consciência de que ouvia pela primeira vez, sentiu um tremor tomar conta de seu pequeno espaço. O tremor veio acompanhado de mais sons desconhecidos, que dessa vez vinham de dentro, reverberando pelo líquido viscoso.   

Enquanto seu corpo chacoalhava no ritmo dos soluços, sentiu algo esticar em sua barriga. Através de um negócio comprido que saía de seu umbigo, conheceu a tristeza. Não sabia, mas também queria chorar.

Não demorou para que a tranquilidade voltasse ao seu pequeno espaço. Estava prestes a pegar no sono quando percebeu a aproximação de uma das paredes. – “Mamãe te ama”, ouviu pela segunda vez, enquanto um calor diferente chegava pela parede fina. Aproximou-se para sentir melhor o afago e – “Ela está chutando!” – ouviu pela terceira vez.

Com o passar das semanas – que nem sabia eram semanas e muito menos que passavam – compreendeu algumas coisas: “dinheiro”, “pai da criança”, “aluguel” e “desemprego” eram sons que geralmente vinham com o tremor que lhe entristecia; “mamãe”, “ama” e “bebê” – seus preferidos – eram acompanhados pelo sempre bem-vindo afago acolhedor; “estou feia e gorda”, “gases” e “tem um tamanho maior”, embora corriqueiros, considerava irrelevantes.

Estava já acostumada com aquele pequeno espaço – mesmo o sentindo menor a cada dia – e não entendeu quando as paredes começaram a se movimentar de uma forma desconhecida. No espaço que antes era completamente escuro, viu surgir uma fresta de luz.

A curiosidade venceu o medo e, no instante em que tentou tocar aquele feixe diferente que se destacava na escuridão, puxaram-na para dentro (da luz) e fora (do espaço).

Sem a menor ideia do que estava acontecendo, sentiu algo entrar pelas suas narinas e estufar seu tórax, não mais flexionado. Não tardou para que emitisse os já conhecidos sons e tremores.

Suas pernas esticaram-se e seus braços movimentavam-se, aflitos, sem saber muito o que fazer com tanta liberdade. – “É menina!”, ouviu – enquanto uma parede ainda mais fina, e sem qualquer líquido, envolvia seu corpo. O pânico foi geral. Tudo o que ouvia era seu próprio som de tremor, cada vez mais alto.

– “Ela é linda!”, disse a voz que lhe afagava, que agora saía de um buraco em movimento. Calou-se para não perder nenhum detalhe da voz familiar, que logo começou a emitir o som de tremor. Não entendeu – mas aquilo não importava, pois estava novamente perto da voz e do calor que lhe acalmavam. Novamente sem saber, conheceu o amor.

C.S.S.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

era pra ser


Luciana e Ricardo tinham gostos parecidos no essencial da vida. Moradores do Setor dos Funcionários, não nutriam grandes ambições, trabalhando dia e noite para pequenas conquistas. Até mesmo nas brigas – se um dia existentes – eles certamente saberiam fazer as pazes e se amar ainda mais. Teriam filhos lindos e inspirariam tantos outros casais.

Ainda sem se conhecer, Luciana e Ricardo eram almas gêmeas. Bastava uma apresentação, um olhar trocado, um esbarrão no metrô.

Não fosse a preguiça de Ricardo para acordar cedo aos domingos, não fosse a não ida de Luciana ao baile da associação de moradores, não fosse a troca de emprego e de linha de metrô de Ricardo, não fosse a jornada extra no trabalho de Luciana aos sábados para quitar o financiamento do apartamento, não fosse – talvez – o rancor do destino.

Morreram sem dar o primeiro beijo desajeitado em frente ao cinema mais antigo da cidade, não ficaram bobos com os primeiros passos de Ricardinho Júnior, não se encheram de orgulho na formatura em Medicina de Nandinha, não realizaram o sonho de conhecer Paris juntos. Morreram sem sentir a maravilha de dar as mãos e entrelaçar as almas.

Foram apenas dois corações repletos de amor a menos no mundo.

(fazer o quê, é a vida)

C.S.S.

domingo, 28 de setembro de 2014

a sociedade do estojo


parecia um estojo qualquer. nele havia lápis azuis e vermelhos, separados de forma organizada – cada um sabia exatamente a parte da gravura que requeria sua cor. 

ansiedade a cada lápis recém-chegado – o apontador – e a ponta logo revelada. o acolhimento pelo grupo era imediato e não tardava o início de suas atividades.

até que – não pode ser! – um lápis recém-apontado desapontou a sociedade do estojo.

à cor desconhecida deram nome de amarelo e disseram que ela não poderia pertencer àquele estojo, que certamente teria havido um engano.

o pobre amarelo – sem meios de se mudar de estojo – havia já se conformado com suas gravuras monocromáticas quando – subversivamente – um azul aventureiro se ofereceu para um dia de trabalho em conjunto.

a inexperiência do pobre amarelo – que não havia aprendido a respeitar os contornos da gravura – misturou sua cor com a do azul aventureiro e – não pode ser! – nenhum dos dois se reconheceu no serviço feito. à nova cor deram o nome de verde, mas o medo de represálias manteve a descoberta sob absoluto sigilo.

não demorou, contudo, para que o grande feito fosse descoberto por um vermelho curioso. temendo ser delatado, o azul aventureiro pediu ajuda do pobre amarelo – que ofereceu suas gravuras monocromáticas ao vermelho curioso para que ele não divulgasse a descoberta ao restante do estojo.

o vermelho curioso – que não era bobo nem nada – pegou as gravuras do pobre amarelo e – reafirmando que aquele estojo não era o seu lugar e objetivando ocultar o pobre amarelo – espalhou sua cor pelas gravuras monocromáticas e – não pode ser! – ele não reconheceu no resultado o seu vermelho e nem o pobre amarelo. à nova cor deu o nome de laranja e a condenou ao absoluto sigilo – quebrando as pontas do pobre amarelo e do azul aventureiro.

não demorou para que os azuis, solidários à ponta quebrada do aventureiro, decidissem aniquilar os vermelhos indesejados do estojo. durante a luta, várias pontas se quebraram e caíram sobre as gravuras ainda por pintar. o atrito das pontas quebradas sobre o papel – não pode ser! – havia resultado em uma nova cor – à qual deram o nome de roxo.

o sentimento de culpa pela quebra das tradições tornou-se, então, generalizado – e o que é geral não discrimina, ocultando-se sob o lenço do irrelevante.

ficou mais bonito! disseram todos os lápis do estojo, num coro colorido que gravura nenhuma colocaria defeito.

C.S.S., aprendendo a pintar 

domingo, 7 de setembro de 2014

dos caminhos e seus tropeços


Todos os caminhos lhe atraíam. Não temia desvios e sua mochila parecia ter espaço para tudo quanto fosse importante. Sem qualquer cautela ou delicadeza, dobrou o mapa de possibilidades e o colocou no bolso. Seguiu.

A verdade, contudo, era que nunca tinha tido habilidade com mapas. Alguns poucos passos e já sentia o peso de uma mochila repleta de inutilidades. Queria parar, voltar, pedir ajuda. Já não havia mais ninguém na estrada – apenas uma pedra no meio do caminho e – não obstante o alerta repetitivo do poeta – tropeçou em suas escolhas.

Ainda se adaptando ao sangue quente que coloria rapidamente seus joelhos, tentava reunir o conteúdo de sua mochila, já espalhado em vários cantos da estrada. Encontrou arrependimentos, amores, procrastinações, dúvidas, saudades, pessoas que não sabia ainda levar consigo. Não necessariamente nesta ordem, não necessariamente em ordem.  

A carga já não cabia em sua mochila. Algumas coisas não podiam mais ser importantes. Foi preciso escolher novamente. E foi então que se lembrou – por mais esforço que fizesse – não conseguia ser triste.

Tirou da mochila algumas culpas e – mais leve – conseguiu caminhar novamente.  

C.S.S., esboçando novos tropeços

sábado, 16 de agosto de 2014

Jogando futebol em uma sala cheia de cristais

(da morte, seus sentimentos e algumas reflexões)

...

A primeira morte da qual me recordo foi de uma prima de meu pai. Acidente de carro. Deixou quatro filhas, mas eu tinha um carinho especial por uma delas. Ela era mais velha do que eu, mas não velha o suficiente para deixar de brincar comigo. E eu gostava disso, eu era grata. Quando soube que a mãe dela havia morrido, pensei em falar alguma coisa. Treinei palavras, simulei um abraço. Eu não podia ir até ela. No auge dos 7 anos, tinha de esperar um encontro casual, programado por familiares. Demorou. Ela já não chorava e estava na piscina, com mais algumas pessoas. Eu a olhava e as palavras sumiam. Não conseguia parar de pensar que ela não tinha mais uma mãe, e eu tinha. E que eu um dia poderia deixar de ter. Assim como muita gente, assim como muitas crianças. Aquilo me apavorou. Eu não entrei na piscina naquele dia, eu não disse nada a ela.

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Estávamos na chácara de um tio. Não me recordo se natal ou casamento, mas jamais me esquecerei da expressão dela. Minha avó soube da morte de sua mãe na minha frente. As costas dela se curvaram e seus olhos sumiram entre as peles das pálpebras comprimidas. Esta não pode ser a minha avó, pensei, eu nunca a tinha visto chorar. Levaram-na para o quarto, não tive coragem de entrar.

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Vivi por um bom tempo como imortal. E imortais eram os que conviviam comigo. Até que ele se foi. Ele estava internado já há algumas semanas. O som do telefone tocando após a meia noite. Eu não precisava atender para saber. Mas eu atendi. E eu tive de acordar o meu pai para dizer que o pai dele havia morrido. Não sei quais palavras usei, e isso nem importava. Lembro do rosto dele, as pálpebras pareciam as da sua mãe, mas ainda sonolentas. O homem deitado no caixão não parecia o meu avô. Talvez por conta da medicação usada na UTI, ou talvez porque eu não queria que fosse ele. Não podia ser ele. E assim mantive a lembrança de meu avô ainda vivo, como forma de diminuir a dor – até então inédita – de perder alguém que a convivência diária, mesmo que às vezes sem grandes acontecimentos e no piloto automático, tornara de uma essencialidade – imperceptível aos olhos desatentos – que a  ausência revelou.  

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Pity. Ah, a Pity! Ela chegou nos meus 9 anos como moeda de troca pela mudança para Goiânia e, sem qualquer dificuldade, conquistou em mim um dos amores mais bonitos que já vivi. Não foi fácil aceitar a ida dela, não foi fácil aceitar aquele espaço vazio na minha cama. 

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Estava começando no meu primeiro emprego. Meu chefe iria fazer uma cirurgia no dia seguinte e me explicava um novo trabalho. Gostava de ouvi-lo falar, e gostava mais ainda quando ele pedia minha opinião e me ouvia prestando sincera atenção. Estávamos em uma discussão bastante interessante quando vi uma ligação no meu celular. Não atendi em respeito ao debate intenso, até que o telefone do escritório tocou. Haviam assassinado o pai de um grande amigo. Sem conseguir acreditar, fui até sua casa na pretensão de, com todas as minhas forças, amenizar o que quer que estivesse surgindo dentro dele. Ao vê-lo, com o olhar perdido e sem o brilho tradicional que desde a sétima série me encantava, não encontrei nenhuma palavra melhor que o meu silêncio. Só consegui abraçar. E abracei de verdade. Queria que ele soubesse que eu estava ali, e que era grata por ele ter me deixado estar com ele naquele momento, mesmo que pouco eu pudesse falar ou fazer para ajudá-lo. Não demorou para que outros amigos chegassem em sua casa e em sua vida. Hoje, acompanhando cotidianamente há dois anos sua intensa luta por justiça, eu já não o admiro como admirava na oitava série. Eu o admiro ainda mais. E mesmo que nem sempre perto, ele sabe que estou ainda ali, naquele abraço.   

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Segunda-feira de manhã. Minha irmã entra aflita no meu quarto: “a vovó caiu”. Nossos pais estavam viajando, foi preciso tomar algumas decisões. Era véspera de seu aniversário e da chegada de seus irmãos. Talvez o destino já programasse a despedida.

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Acontecimentos ainda mais recentes têm me feito pensar na morte diariamente. Não só minha, mas – e principalmente – das pessoas que amo. Não me tornei, contudo, uma pessoa triste.

A perda de alguém querido faz com que coloquemos compulsivamente lembranças em seu lugar, na esperança de que elas, de alguma forma, amenizem a dor da ausência. Isso funciona pouco pra mim, que logo sou tomada pelo “e se”. E se eu não estivesse sempre tão ocupada, e se eu tivesse aproveitado mais o tempo com ele, e se tivesse dito “eu te amo”.

Então eu – que nunca fui muito de falar sentimentos – decidi amar implicitamente. E, embora nem sempre com 100% de sucesso, tenho amado com sorrisos, paciência, conversas despretensiosas. Tenho amado com atenção. Atenção aos detalhes, pois estes pequenos amores serão lembranças um dia.  Assim, acordar um pouco mais cedo para tomar café com o seu pai pode te fazer perceber que ele come maçã diariamente só para poder jogar pedaços para a cachorrinha. Assistir a um filme com sua mãe pode te fazer perceber que ela, deitada no sofá com as pernas para cima, sempre dança com as pontas dos pés no ritmo da trilha sonora. Conversar sobre diversos tipos de hidratação e tintas para cabelo com sua irmã não é impossível e, por vezes, pode até ser bem legal.

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Em tempos pós-copa, gosto de encarar a dinâmica da vida como um jogo de futebol numa sala cheia de cristais. Nela, os times de Deus ou do destino realizam lances arriscados – nem sempre belos – quebrando precocemente sonhos e planos. Quantos segredos não revelados, palavras ainda por dizer e ideias não realizadas se escondem nos cemitérios!     

Se a vida é o bem mais democrático já inventado, não se pode dizer o mesmo da morte. Entre elas, um segundo – que não controlamos e não sabemos onde está. A vida é curta. Mas, ao contrário do que isso possa indicar, não precisamos ter pressa.

Carol, vivendo a morte como ela é