(da morte, seus
sentimentos e algumas reflexões)
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A
primeira morte da qual me recordo foi de uma prima de meu pai. Acidente de
carro. Deixou quatro filhas, mas eu tinha um carinho especial por uma delas.
Ela era mais velha do que eu, mas não velha o suficiente para deixar de brincar
comigo. E eu gostava disso, eu era grata. Quando soube que a mãe dela havia
morrido, pensei em falar alguma coisa. Treinei palavras, simulei um abraço. Eu
não podia ir até ela. No auge dos 7 anos, tinha de esperar um encontro casual,
programado por familiares. Demorou. Ela já não chorava e estava na piscina, com
mais algumas pessoas. Eu a olhava e as palavras sumiam. Não conseguia parar de
pensar que ela não tinha mais uma mãe, e eu tinha. E que eu um dia poderia
deixar de ter. Assim como muita gente, assim como muitas crianças. Aquilo me
apavorou. Eu não entrei na piscina naquele dia, eu não disse nada a ela.
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Estávamos
na chácara de um tio. Não me recordo se natal ou casamento, mas jamais me
esquecerei da expressão dela. Minha avó soube da morte de sua mãe na minha
frente. As costas dela se curvaram e seus olhos sumiram entre as peles das pálpebras
comprimidas. Esta não pode ser a minha avó, pensei, eu nunca a tinha visto
chorar. Levaram-na para o quarto, não tive coragem de entrar.
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Vivi
por um bom tempo como imortal. E imortais eram os que conviviam comigo. Até que
ele se foi. Ele estava internado já há algumas semanas. O som do telefone
tocando após a meia noite. Eu não precisava atender para saber. Mas eu atendi.
E eu tive de acordar o meu pai para dizer que o pai dele havia morrido. Não sei
quais palavras usei, e isso nem importava. Lembro do rosto dele, as pálpebras pareciam
as da sua mãe, mas ainda sonolentas. O homem deitado no caixão não parecia o
meu avô. Talvez por conta da medicação usada na UTI, ou talvez porque eu não
queria que fosse ele. Não podia ser ele. E assim mantive a lembrança de meu avô
ainda vivo, como forma de diminuir a dor – até então inédita – de perder alguém
que a convivência diária, mesmo que às vezes sem grandes acontecimentos e no
piloto automático, tornara de uma essencialidade – imperceptível aos olhos
desatentos – que a ausência revelou.
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Pity.
Ah, a Pity! Ela chegou nos meus 9 anos como moeda de troca pela mudança para
Goiânia e, sem qualquer dificuldade, conquistou em mim um dos amores mais
bonitos que já vivi. Não foi fácil aceitar a ida dela, não foi fácil aceitar
aquele espaço vazio na minha cama.
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Estava
começando no meu primeiro emprego. Meu chefe iria fazer uma cirurgia no dia
seguinte e me explicava um novo trabalho. Gostava de ouvi-lo falar, e gostava
mais ainda quando ele pedia minha opinião e me ouvia prestando sincera atenção.
Estávamos em uma discussão bastante interessante quando vi uma ligação no meu
celular. Não atendi em respeito ao debate intenso, até que o telefone do
escritório tocou. Haviam assassinado o pai de um grande amigo. Sem conseguir
acreditar, fui até sua casa na pretensão de, com todas as minhas forças,
amenizar o que quer que estivesse surgindo dentro dele. Ao vê-lo, com o olhar
perdido e sem o brilho tradicional que desde a sétima série me encantava, não encontrei
nenhuma palavra melhor que o meu silêncio. Só consegui abraçar. E abracei de
verdade. Queria que ele soubesse que eu estava ali, e que era grata por ele ter
me deixado estar com ele naquele momento, mesmo que pouco eu pudesse falar ou
fazer para ajudá-lo. Não demorou para que outros amigos chegassem em sua casa e
em sua vida. Hoje, acompanhando cotidianamente há dois anos sua intensa luta
por justiça, eu já não o admiro como admirava na oitava série. Eu o admiro
ainda mais. E mesmo que nem sempre perto, ele sabe que estou ainda ali, naquele
abraço.
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Segunda-feira
de manhã. Minha irmã entra aflita no meu quarto: “a vovó caiu”. Nossos pais
estavam viajando, foi preciso tomar algumas decisões. Era véspera de seu
aniversário e da chegada de seus irmãos. Talvez o destino já programasse a
despedida.
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Acontecimentos
ainda mais recentes têm me feito pensar na morte diariamente. Não só minha, mas
– e principalmente – das pessoas que amo. Não me tornei, contudo, uma pessoa triste.
A
perda de alguém querido faz com que coloquemos compulsivamente lembranças em
seu lugar, na esperança de que elas, de alguma forma, amenizem a dor da
ausência. Isso funciona pouco pra mim, que logo sou tomada pelo “e se”. E se eu
não estivesse sempre tão ocupada, e se eu tivesse aproveitado mais o tempo com
ele, e se tivesse dito “eu te amo”.
Então
eu – que nunca fui muito de falar sentimentos – decidi amar implicitamente. E,
embora nem sempre com 100% de sucesso, tenho amado com sorrisos, paciência,
conversas despretensiosas. Tenho amado com atenção. Atenção aos detalhes, pois
estes pequenos amores serão lembranças um dia.
Assim, acordar um pouco mais cedo para tomar café com o seu pai pode te
fazer perceber que ele come maçã diariamente só para poder jogar pedaços para a
cachorrinha. Assistir a um filme com sua mãe pode te fazer perceber que ela,
deitada no sofá com as pernas para cima, sempre dança com as pontas dos pés no
ritmo da trilha sonora. Conversar sobre diversos tipos de hidratação e tintas
para cabelo com sua irmã não é impossível e, por vezes, pode até ser bem legal.
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Em
tempos pós-copa, gosto de encarar a dinâmica da vida como um jogo de futebol
numa sala cheia de cristais. Nela, os times de Deus ou do destino realizam
lances arriscados – nem sempre belos – quebrando precocemente sonhos e planos.
Quantos segredos não revelados, palavras ainda por dizer e ideias não
realizadas se escondem nos cemitérios!
Se a
vida é o bem mais democrático já inventado, não se pode dizer o mesmo da morte.
Entre elas, um segundo – que não controlamos e não sabemos onde está. A vida é
curta. Mas, ao contrário do que isso possa indicar, não precisamos ter pressa.
Carol, vivendo a morte
como ela é
Bonito texto. Um afago para os desatentos. : )
ResponderExcluirObrigada! ;)
ExcluirTexto pungente e daqueles que dá um aperto no peito... Algumas experiências deixam marcas indeléveis, mas escrever acaba sendo uma forma de trabalhá-las. Belo texto, o título, um achado.
ResponderExcluirFinanapaz
P.S A luta de VLF realmente é além de tudo, muito corajosa.
Muito obrigada, Cristiano! ;)
ExcluirEscrever tem sido ultimamente a única forma de trabalhar qualquer marca.
Muito bacana este texto. Se a Adriana Falcão em sua obra "A máquina" fala de um sujeito que não dá assunto pra morte, ou faz o contrário do que a morte esperaria, como demonstrado em um trecho que diz assim: "ainda hoje eu canto, que é pro caso dela passar por perto", podemos falar de uma tal Schmid, que "ainda hoje escreve,que é pro caso da morte passar por perto, pois se tem coisa que a morte não gosta é da Palavra 'bem dita'". De verdade, você é ótima! Parabéns!!!
ResponderExcluirMuito obrigada, Monara! Meio ano depois e eu decidi aparecer por aqui novamente... rsrsrs São leitoras atentas como você que me fazem escrever ainda mais! Gratidão por tudo, de verdade! <3
ExcluirCarol, que lindo texto!
ResponderExcluirMuito obrigada! <3
ExcluirLindo texto. Me encantei e me fez pensar na perda de um filho, jovem rapaz e esperançoso, que foi sem que eu pudesse dizer:Eu te amo (par 8° e 11° do seu poema). Obrigado Carol (garota dos 50 reais de gasolina)
ResponderExcluirMuito obrigada! Fico feliz que o texto esteja tocando as pessoas. <3
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