terça-feira, 24 de novembro de 2015

Vai pro inferno


Ontem recebi uma carta do diabo.

No check list das
incongruências
desonrei
mãe e pai
matei
sonhos e vontades
sobrevivi
à base de falsos testemunhos
desejei
a mulher
não apenas do próximo
pequei
contra a castidade
e fiz do sexo meu
fictício
prazer imediato

Com o julgamento
em mãos
sigo
mentindo a liberdade
de meu corpo
vazio
enquanto minha alma
jaz
imóvel
na vala coletiva
dos covardes

Em minha defesa
nada a declarar.

C.S.S.

sábado, 7 de novembro de 2015

A mulher da caverna


Em sua caverna luxuosa
encantavam-lhe as correntes de ouro e os carrascos sedutores  

Vivia um belo cotidiano platônico
que nada tinha de amor

Não mais que de repente, a consciência de que
nenhuma de suas muitas visitas ficaria para dormir

Teve de enfrentar a própria companhia e sua tagarelice silenciosa

Os lenços velhos já não enxugariam o choro novo
repleto de lágrimas surpreendentemente sinceras

Quais mentiras inventará agora que já não há mais verdades a camuflar?

C.S.S.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Quanto te devo?


Você diz que vou me arrepender, pois só você sabe quanto tempo, amor e dinheiro investiu em nosso relacionamento.

Eu deveria ser grata, deveria levar tudo isso em consideração. Ainda mais eu, que nunca fui grande coisa e que, repleta de mágoas passadas, me perco facilmente no presente, sem qualquer ideia de futuro. 

O que será de mim sem os caminhos que você já desenhou? Como pode alguém querer abandonar um ser tão iluminado?

Eu não sei, não é a primeira vez que fico sem saber. Ocorre que “não saber” me parece bem mais interessante que as suas possíveis respostas.

Se eu decidi partir, a culpa não é de ninguém. Talvez você seja de fato muito pra mim, ou talvez eu queira mais do mundo. Talvez eu precise errar para ver que você estava certo, ou talvez eu conheça outras verdades.

Eu te amei e dei tudo o que estava ao meu alcance. Se não fui suficiente, esse já não é mais um problema meu.

Me ameace, diga que lhe devo, diga o valor, contabilize os prejuízos. Sinta raiva, me odeie por alguns meses e, se puder, perdoe o meu adeus endividado.


C.S.S., mais uma vez no limite do cheque especial

sábado, 29 de agosto de 2015

Quanto pesa a sua mochila?


A palavra que precisava ganhar som, mas que permaneceu presa nos fundos empoeirados e ressecados da garganta. A oportunidade perdida. O choro que não conheceu a lágrima e apenas sufocou.  

Perdi as contas das vezes que me calei diante de situações que efetivamente me machucaram. Elas aconteceram no trabalho, em casa, nos relacionamentos, na rua, nos mais variados horários, através de palavras ou um simples olhar.

Muitos estudiosos já alertaram acerca da importância de falar sobre sentimentos, de se expressar. Dica óbvia, mas pouco factível. Pelo menos pra mim. Pelo menos para aqueles e aquelas que, como eu, dificilmente conseguem raciocinar diante da dor ou que, em momento de rara reflexão, mantêm as palavras em cárcere privado, limitando-se a angustiar o peito e intensificar (ainda mais) o sofrimento.

Sofrer não é exclusividade minha, nem sua. O que fazemos com nossa dor, isso sim pode ser um diferencial.

Nossos sentimentos estão conectados aos estímulos externos, não é novidade. O grande problema acontece quando não estabelecemos a diferença entre o que o outro faz e o que isso provoca em nós. O que é dito e o que compreendemos a partir disso.

O possível destinatário das palavras não ditas não sabe o que está acontecendo dentro de nós, se há raiva, mágoa, tristeza, saudade, arrependimento. Ele provavelmente jamais saberá. E está tudo bem. Ele continua vivendo a vida dele, muitas vezes sem nem lembrar da situação passada, que tanto nos machucou. Não o culpe por isso. Não o culpe pelo que nos permitimos sentir.

Se sentimentos mal-administrados envenenam nossas almas, a responsabilidade pela gerência falha é total e absolutamente nossa. 

Claro que sempre parecerá mais fácil esconder o caos sentimental em nossas mochilas, fechar bem o zíper, colocar nas costas e seguir na ilusão de que, fora do alcance dos olhos, não mais machuquem o coração.   

Não importa se sua mochila é grande ou se seus ombros são fortes. Em algum momento o peso se tornará insuportável. Será necessário parar, ou a própria vida te fará tropeçar em suas escolhas.   

Nesse instante, a mochila será aberta. As feridas também. Toda sorte de sentimentos, dores e mágoas virão à tona. Será preciso decidir o que fazer com eles, pois a carga já não caberá mais em sua mochila.

Livre-se das culpas, jogue fora as mágoas, transforme a dor em criatividade, em sopro de vida. Os pés precisam voltar a caminhar.

Se a fadiga do peso e da viagem tiver lhe esgotado as energias, não tenha vergonha de pedir ajuda, nem que seja a terapia dos amigos em mesa de bar (não raras vezes mais eficiente que a profissional).

Não se esqueça, contudo, que sua mochila é sua responsabilidade. Definir seu conteúdo é uma tarefa solitária. Só você sabe o que consegue (e quer) carregar.

C.S.S., arrumando a bagagem mais uma vez.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Eleições

a corrente sanguínea está em festa
e os órgãos,
preparados para o debate

de tempos em tempos
é sempre bom renovar

a mente desmente
e põe crente
aquele que nunca quis acreditar

tudo coberto de flores
a quem se quer enganar?

padrões consomem
acordo mulher, durmo homem

não escolhi ser assim
meu coração é pluripartidário
e restou derrotado
nas eleições de mim

C.S.S., sem sucesso no novo mandato 

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Pudim do Esquecimento

Ingredientes
3 xícaras de amor próprio
500ml de amigos verdadeiros
5 colheres de baladas e novas bocas*  

*em caso de alergia ou aversão a baladas, este ingrediente poderá ser substituído por 9 colheres de reuniões aleatórias com amigos verdadeiros, desde que regadas a muita conversa fiada e risadas genuínas.

Modo de preparo
Bater o amor próprio por alguns minutos, até ele adquirir certa consistência. É comum que o amor próprio não adquira uma consistência muito firme nesta fase da receita, por isso é fundamental o acréscimo dos amigos verdadeiros. Dica importante neste preparo é que as baladas e bocas novas só devem ser adicionadas ao final, sob pena de amargarem toda a refeição.

Se, após misturar os ingredientes, ainda verificar a presença de grandes pedaços de dor, bater tudo no liquidificador do “foda-se” e comer com felicidade.


C.S.S., começando novo regime

sexta-feira, 13 de março de 2015

Aula de Natação


Seu corpo
Minha piscina
Mergulho e afundo
De prazer
Na respiração
Boca a boca
Que só você sabe fazer

É muito amor
Pra me afogar
Vem
Salva a minha vida
Me ensina a nadar

C.S.S.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Ficou pra semente


Mal sabia o que lhe esperava a pobre semente de Gossypium barbadense L., vulgo algodoeiro. Sem tempo para se conscientizar acerca das possibilidades da vida, foi abruptamente imersa em terra fofa. Paralisada com a escuridão, sentiu a umidade de seu cativeiro lhe puxar ramificações por todo o corpo, fundindo-se com seu algoz.

Do medo fez-se a força, e a pequena semente não demorou para tornar-se broto. Cresceu com folhas largas e floresceu uma felicidade bonita de se ver. Durou pouco.

Ainda lamentava as flores caídas no chão quando percebeu que cápsulas grandes e verdes permaneciam em seus ramos. Sentiu o sol amadurecê-las para logo explodirem em algodão branco.

Ainda sem entender tudo o que lhe acontecia, a pobre semente – que já não era mais semente, em que pese ainda pobre – conheceu a colheitadeira de algodão, que veio e foi rápido, deixando para trás galhos, folhas e solidão.

Descaroçado, seco e escovado, o fardo tornou-se fibra. Após urdiduras e tramas, fez-se o tecido e a camisa 100% algodão do Sr. Ubaldo.

Se vivo, Sr. Ubaldo provavelmente não escolheria aquela camisa – mas sua digníssima esposa o queria bonito para a despedida. Comprou camisa e sapatos novos, que foram imersos – juntamente com o Sr. Ubaldo – na mesma terra fofa de nossa pobre semente.